sábado, 10 de agosto de 2013

RAFAEL GARCIA: O que descobri sobre o gás lacrimogêneo,

CAROS LEITORES, em primeiro lugar, perdão pela ausência prolongada neste blog. Estive ocupado com uma mudança transcontinental e passei mais tempo do que gostaria sem escrever. Mas voltar ao Brasil é sempre um choque de realidade, e já chego falando de um tema extremamente atual: as bombas de gás lacrimogêneo.

Após a morte de uma gari que inalou a poeira exalada por essa infame arma de efeito moral ontem, em Belém, colegas que estão cobrindo os protestos vieram me perguntar se eu sabia algo sobre a ciência desse artefato. O que é o gás lacrimogêneo? Causa apenas irritação? É perigoso para a saúde? Como combater os efeitos?

Eu não sabia. Mas, depois de procurar um pouco, achei alguns trabalhos científicos sobre o tema e me convenci de que a infame clorobenzalmalonitrila, o princípio ativo do gás lacrimogêneo, é o tipo de coisa que precisa ter um uso mais limitado, ou ser banida, assim como as balas de borracha.

Lágrimas e algo mais

Os efeitos agudos dessa substância (que na verdade é um pó em suspensão, não um gás) são bem conhecidos por qualquer um que já o tenha inalado. Uma forte irritação nos olhos começa de 20 a 60 segundos após a exposição, fazendo a pálpebra contrair e causando as copiosas lágrimas que dão nome à substância. 

Seu nome em inglês, “CS gas”, é uma referência aos sobrenomes dos químicos Ben Corson e Roger Stoughton, que o sintetizaram pela primeira fez em 1928 em Vermont, nos Estados Unidos.
O uso de cápsulas de gás lacrimogêneo para controle de multidões começou na década de 1950 nos EUA, mas foi só na década de 1960 –quando não faltavam protestos a serem reprimidos– que a prática se consolidou e se espalhou para o mundo. 

Os sintomas mais evidentes do gás lacrimogêneo cessam em até 30 minutos, mas logo a literatura médica começou a relatar que esse gás causa mais do que lágrimas. Apesar de serem em geral consistentes com a alegação de que o gás é “não letal”, esses estudos logo começaram a relatar vítimas com tosse persistente, excesso de muco, fortes dores de cabeça, tontura, dispneia, falta de ar e queimaduras de pele.

Como o gás lacrimogêneo causa tudo isso? Ao contato com as mucosas úmidas dos olhos, boca e narinas, ele é fragmentado em substâncias tóxicas (derivados de cianetos e tiossulfatos, para quem se interessa). Estas, por sua vez, provocam a liberação de neurotransmissores como a substância P, um mediador de reações inflamatórias também envolvido na sensação de queimadura e no estímulo ao vômito. (Já vi gente vomitando após sair de uma nuvem de gás lacrimogêneo.) 

Neurônios com o receptor químico TRPA1, envolvido em transmitir dor, também são ativados. E pouco se sabe além disso.

O problema com o vinagre

Para tentar combater esses efeitos, muitos manifestantes carregavam vinagre durante os protestos. Esse ingrediente, que contém ácido acético, pode ajudar aliviar os casos mais graves de contato com o gás: as queimaduras alcalinas na pele. 

Esse tipo de ferimento, porém, só ocorre em casos mais extremos, quando policiais atiram muitas cápsulas de pó lacrimogêneo no mesmo lugar (algo que eles são treinados para não fazer). Manifestantes que se recusam a sair das nuvens de pó lacrimogêneo também podem ter esse tipo de queimadura.

O ácido acético ( em concentração de 5%), porém, só é útil nesses casos mais raros de queimaduras de pele. Nos últimos dias, alguns manifestantes passavam vinagre no rosto ou bebiam o líquido após terem inalado pó lacrimogêneo. Isso só serve para causar mais irritação nos olhos e na boca. 

O único antídoto eficaz para a irritação é o vento fresco e, depois, tomar um bom banho com muita água, de preferência fria. Não se deve lavar as roupas expostas usando água quente, que faz o pó lacrimogêneo vaporizar e contamina a lavanderia.

Os efeitos graves

Apesar das descobertas recentes sobre o mecanismo de ação do gás lacrimogêneo, outras reações adversas ainda não são bem exploradas, e alguns médicos já começam a questionar sua classificação de “não letal” e sua segurança no uso de controle de protestos.

“Apesar de não existirem estudos controlados sobre os efeitos de longo prazo da exposição a esses agentes, testes in vitro implicam a possibilidade de efeitos mutagênicos”, diz Malachy Asuku, médico da Universidade Johns Hopkins, dos EUA, que fez pesquisa recente sobre a literatura do tema.

Oftalmologistas são particularmente preocupados, e há estudos sugerindo que o gás pode estimular catarata, hemorragia vítrea, danos no nervo óptico e, sobretudo, glaucoma. No sistema respiratório, o risco maior é de edema pulmonar, sobretudo para quem já tem bronquite ou mal semelhante.

Não existem muitos relatos de efeitos agudos graves do gás lacrimogêneo. Alguns jornalistas especularam que a morte da gari que inalou o gás ontem tivesse algo a ver com ela possuir hipertensão e se tratar com remédios. Não achei literatura médica relacionada diretamente a esse problema, mas há estudos das décadas de 1980 e 1990 sugerindo riscos para pessoas idosas com males cardíacos.

Ainda que não seja possível ligar a morte da gari com o gás, já existe evidência suficiente para defender que esse tipo de arma química passe a ser usado com mais comedimento. Os riscos são muitos. 

Não falei com especialistas em segurança, e não sei se o banimento total dessa substância seria uma bandeira legítima. Certamente, porém, o gás lacrimogêneo não era o instrumento adequado para lidar com manifestantes que se aproximavam pacificamente do Congresso Nacional na noite de ontem, por exemplo.

PS. Eu tinha esquecido de mencionar que é importante evitar enfrentar nuvens de pó lacrimogêneo com roupas molhadas. A roupa úmida absorve o pó lacrimogêneo e entra em atrito com a pele, podendo causar as tais queimaduras alcalinas. Na hora de tomar banho, é importante usar água corrente, aliás.

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BIBLIOGRAFIA:
Beyond Tears: the potential hazards of the O-Chlorobenzyldilene-Malonitrile (CS) Gas Under ScrutinyAsaku, ME; Milner, SM; Gerold, KB – “Journal of Special Operations Medicine”, Vol. 11, Ed. 4, 2011
Is CS gas dangerous?, Fraunfelder, FT – “British Medical Journal”, Vol. 320, Pág. 458, 2000
CS exposure – clinical effects and management, Worthington, E; Nee, PA – “Journal of Accident & Emergency Medicine”, Vol. 16, Pág. 168, 1999
Treating CS gas injuries to the eye, Gray PE, “British Medical Journal”, Vol. 311, Pág. 871, 1995

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