sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Frankensteins modernos

Frankensteins modernos
Edição 176 - Mar/06

Quem não se lembra daquela estranha imagem de um rato com uma orelha humana nas costas?

O animal, criado há alguns anos na Universidade de Massachusetts, é um emblema da estranheza que algumas experiências científicas podem causar, como também aconteceu com os porcos verdes fluorescentes criados recentemente por cientistas da Universidade de Taiwan.

Os animais receberam o gene da proteína da fluorescência da água-viva - procedimento comum em pesquisas genéticas -, e serão usados para estudos sobre a ação de células-tronco no organismo.

Esse tipo de experimento provoca as mais variadas discussões éticas, morais e técnicas. A começar pela questão dos direitos dos animais.

Temos desde a vertente que acredita que todas as formas de vida merecem o mesmo respeito - da qual faz parte o conceituado filósofo Peter Singer, que defende que os animais têm tanto direito à vida quanto nós e que as pesquisas poderiam ser feitas com recursos como simulações - até cientistas que não fazem distinção entre utilizar uma rã ou um macaco em pesquisas.

Mas, mesmo se admitirmos a legitimidade do uso de animais como cobaias, nós podemos manipulá-los geneticamente dessa maneira? '

O rato com a orelha era completamente anômalo. Mas, se ele foi confinado e se aquele estudo nos dá conhecimento e a possibilidade de recuperar a audição de pessoas ou mesmo de animais, claro que é válido', opina Volnei Garrafa, coordenador da cátedra Unesco de bioética da Universidade de Brasília. O mesmo princípio vale para os porcos fluorescentes.

'Esses porcos certamente servirão de base para outras pesquisas', afirma Márcia Raymundo, do Grupo de Pesquisas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Para complicar a questão por aqui, não existe nenhuma lei no Brasil que regulamenta experiências com animais.

O que temos são comitês de ética: sem ter seu projeto aprovado por um deles, dificilmente um pesquisador consegue inserir seu trabalho em uma publicação científica séria.

'Um modelo seguro tem que ser testado em animal, mas claro que dentro de um código de conduta', explica Lygia da Veiga Pereira, pesquisadora do Centro de Estudos do Genoma Humano, da Universidade de São Paulo.

Uma equipe de cientistas da universidade, liderada por Lygia, criou os primeiros camundongos transgênicos do Brasil, em 2001. Para servirem como modelos de estudos, os animais foram manipulados geneticamente para tornarem-se suscetíveis à síndrome de Marfan, que causa deformidades ósseas e provoca a dilatação da aorta, cujo rompimento é a principal causa de morte entre os portadores.

Como estamos tratando de mudança na constituição genética de seres vivos, há ainda quem se preocupe ao imaginar um monte de 'frankensteins' soltos por aí.

'As pesquisas têm de ser rigorosamente seguidas por comitês independentes de ética', defende Garrafa. 'A síndrome da vaca louca foi uma revolta da natureza. Estavam dando ração para os animais na qual entravam carcaças de outros da mesma espécie, transformaram as vacas em canibais', explica.

Mas o quadro nem sempre é tão sinistro quanto esse exemplo. 'O maior risco é o insucesso da técnica', diz Margareth Capurro, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, ao se referir a sua área de estudo.

A pesquisadora coordenou um grupo que, em 2002, criou um mosquito transgênico incapaz de transmitir o protozoário da malária que ataca galinhas. A idéia é que, no futuro, esses mosquitos possam se misturar aos naturais e espalhar seus novos genes, diminuindo a contaminação.

O sucesso não é garantido, mas, para a pesquisadora, várias frentes devem ser abertas no combate à doença. 'Existe a mesma chance de haver resistência com novos fármacos', defende.

A modificação genética em insetos visa não só benefícios para a saúde humana, como também aplicações na agricultura. Cientistas já trabalham em criações como abelhas resistentes a inseticidas e moscas-da-fruta que causam menos danos a plantações.

Outro caminho que esses experimentos abrem é a possibilidade de xenotransplante, ou transplante de órgãos entre diferentes espécies. O marco da técnica foi em 1985, quando foram criados os primeiros porcos transgênicos com genes humanos, na tentativa de gerar órgãos que não seriam rejeitados.

 'Hoje já existem porcos com órgãos completamente adaptados para humanos', conta Garrafa. Porém esse procedimento ainda é proibido no mundo todo: teme-se que algum vírus ou microorganismo presente nos porcos possa ser prejudicial para os humanos.

Mas, se a ciência pode justificar a manipulação de vidas, o mesmo pode ser dito sobre a 'arte transgênica', movimento que transforma animais, plantas e bactérias como forma de expressão?

O brasileiro Eduardo Kac, um dos pioneiros nessa arte, provocou polêmica, em 2000, ao apresentar uma de suas obras: a coelha transgênica Alba, que também possuía a proteína da fluorescência.

 'Não criamos objetos, mas sujeitos, e temos responsabilidade pelo bem-estar deles', declara Kac.

 'Meu interesse é que a obra de arte levante questões mais profundas sobre o que significa estar no mundo hoje, o que será o mundo futuro e onde começa o humano e termina o animal', justifica.

Seja para a ciência ou para a arte, a questão deve ser discutida por toda a sociedade. 'Cada país deve fazer leis de pesquisas com animais, e entidades internacionais devem elaborar estatutos', afirma Volnei Garrafa.

Só assim poderemos alcançar conhecimento científico com o máximo de segurança e comprometimento ético.
Para ler
 'Libertação Animal', Peter Singer. Lugano. 2004Para navegar
 Biotechnology - Information Directory
www.cato.com/biotech
 Centro de Bioética - www.bioetica.org.br
 Eletronic Journal of Biotechnology -www.ejbiotechnology.info
 Pew - pewagbiotech.org
 Soc. Bras. de Bioética - www.sbbioetica.org.br

Um exemplo de como a engenharia genética pode ajudar nas pesquisas sobre doenças é essa imagem de um peixe-zebra transgênico, criado pelo cientista americano David Langenau, da Universidade de Harvard. O pesquisador inseriu e manipulou o gene da proteína da fluorescência da água-viva no peixe, para que células de leucemia fossem facilmente identificadas. Esse recurso permite a visualização das células cancerosas invadindo tecidos próximos à glândula timo (localizada na região central do tórax dos humanos) e projetando-se por baixo das brânquias. Esse peixe foi desenvolvido para estudar como variadas mutações genéticas e terapias com drogas afetam o desenvolvimento do câncer.
É impossível falar de engenharia genética animal e não pensar na humana. Alguns cientistas acreditam que, em um futuro não muito distante, os 'designer babies', ou bebês produzidos sob encomenda, façam parte do cotidiano das pessoas. Avanços na fertilização in vitro já permitem a identificação de algumas doenças genéticas em embriões e a seleção de um que não apresente o problema, assim como um dia talvez seja permitido que pais possam determinar sexo, características físicas e até tendências psicológicas dos filhos.

1. O DNA é recortado pela enzima de restrição e inserido em um plasmídeo (molécula de DNA circular existente em bactérias)
2. A bactéria é colocada em meio de cultura e se multiplica
3. Recuperação dos plasmídeos contendo o DNAinserido
4. Microinjeção dos plasmídeos em ovos de insetos
5. Seleção dos insetos transformados
Fonte: Margareth Capurro (Instituto de Ciências Biomédicas da USP) e Pew Initiative on Food and Biotechnology

1910 Moscas-da-fruta são usadas em estudos de genética

1953 Descoberta a estrutura do DNA


1980 Cientistas começam a alterar genes de moscas

1982 Um rato transgênico com tendência para desenvolver câncer é o primeiro ser vivo patenteado

1985 São criados os primeiros porcos transgênicos

1995 Cientistas criam um rato com uma orelha humana nas costas

1997
 Cientistas americanos criam mosquito da malária transgênico



1997 Criadores da ovelha Dolly produzem Polly, a primeira ovelha com genes de proteína humana

1998 São desenvolvidos os porcos 'P33', com alta taxa de compatibilidade com humanos

2000 É criada a coelha transgênica Alba

2001 O macaco transgênico Andi provoca protestos de sociedades protetoras dos animais

2001 Nascem os primeiros porcos clonados com células geneticamente modificadas
2001 São apresentados os primeiros camundongos transgênicos do Brasil

2002
 Cientistas israelenses criam galos transgênicos sem penas
2002 Mosquitos transgênicos da malária são criados no Brasil

2004
 A empresa Glofish começa a comercializar peixes transgênicos brilhantes

2006
 Cientistas de Taiwan criam porcos fluorescentes inteiramente verdes
Fonte: http://revistagalileu.globo.com/EditoraGlobo/componentes/article/edg_article_print/1,3916,1140528-1719-1,00.html

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